O Ritual do Corpo entre os Sonacirema.

Resenha 

O Ritual do Corpo entre os Sonacirema.

Horace Minner

Por: Elisia Santos

As crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais que nos parece importante descrevê-los como exemplo dos extremos a que o comportamento humano pode chegar.
 Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive no território que se estende desde os Cree do Canadá, aos Yaqui e Tarahumara do México, e aos Caribe e Aruaque das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do leste.
A cultura Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat cultural muito rico. . O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante de ethos deste povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícitas são únicas.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar estas características, através do uso de poderosas influências do ritual e de cerimônia. Todo o grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma casa é freqüentemente aferida em termos da quantidade dos centros de rituais que abrigam. 
Embora cada família possua ao menos um destes santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças, e isto apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nestes mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu examinar este santuário e anotar a descrição destes rituais.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários profissionais especializados. 
O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas sim colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar sempre transbordando. 
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. As águas sagradas são obtidas do Templo da água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.
Os Sonacirema têm um horror pela boca e uma fascinação por ela que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca das crianças que se considera como forma de desenvolver sua fibra moral.
O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado da boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não-iniciado não consegue deixar de achar repugnante. Conforme foi descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós mágicos, e em seguida na movimentação deste feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados.
Além deste rito bucal privado, as pessoas procurar um homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes profissionais possuem uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase e inacreditável tortura ritual do cliente. O homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nestes buracos. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do cliente, o objetivo destas aplicações é deter ao apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos retornam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus dentes continuem a se deteriorar.
Os curandeiros possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos.
As cerimônias latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de leva-las ao templo, alegando que “é aonde você vai para morrer”. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.
 A súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh, costuma causar um choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma vestal, enquanto executa assim suas funções naturais dentro de um vaso sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, vêm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados nas camas duras. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus pacientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido como um “escutador”. Este feiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem feitiçaria entre sues próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição na criança, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contra-magia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa ausência de ritual. 
Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos ainda são usados para fazer os seios das mulheres maiores, se eles são pequenos, e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem através de simples viagens à aldeia, permitindo aos nativos admirá-los mediante uma taxa.
O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, e programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a gravidez por meio de uso de materiais mágicos, ou pela limitação do intercurso em certas fases da lua. Quando grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou parentes assistindo, e a maioria das mulheres não amamenta nem cuida dos seus bebês.
Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia.  Mas, mesmo os costumes tão exóticos quanto estes, ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski, quem escreveu:
“Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas sem este poder e este guia, o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como fez, nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização.”


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