RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA
RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA1
Lélia Gonzales
I – Cumé que a gente fica?
... Foi
então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles,
dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito
bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa
onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era
oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por
esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não
deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem,
procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados,
ensinado um monte de coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se
apertasse um pouco até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar
juto na mesa.
Mas a festa
foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá,
chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso,
tudo com muito aplauso.
Foi aí que
a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado
ela prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no
microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo
na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso
prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá
ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com
razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a
gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se
viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior
boa vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente da gente? Teve um hora que
não deu prá agüentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era
demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha
pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a festa acabou em briga...
Agora, aqui
prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado
com a língua nos dentes... Agora ta queimada entre os brancos. Malham ela até
hoje. Também quem mandou não saber se comportar? Não é a toa que eles vivem
dizendo que “preto quando não caga na entrada, caga na saída”...
1Apresentado
na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no
Brasil”, IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa
nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1980.
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A longa
epígrafe diz muito além do que ela conta. De saída, o que se percebe é a
identificação do dominado com o dominador. E isso já foi muito bem analisado
por um Fanon, por exemplo. Nossa tentativa aqui é a de uma indagação sobre o
porquê dessa identificação. Ou seja, que foi que ocorreu, para que o mito da
democracia racial tenha tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os
processos que teriam determinado sua construção? Que é que ele oculta, para
além do que mostra? Como a mulher negra é situada no seu discurso?
O lugar em
que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do
racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que
caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua
articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em
particular.
Conseqüentemente,
o lugar de onde falaremos põe um outro, aquele é que habitualmente nós vínhamos
colocando em textos anteriores. E a mudança foi se dando a partir de certas
noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos levaram a retornar a
questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das noções de mulata,
doméstica e mãe preta.
Em
comunicação apresentada no “Encontro Nacional da LASA (Latin American Studies
Association), em abril de 1979 (Gonzales, 1979a), falamos da mulata, ainda que
de passagem, não mais como uma noção de caráter étnico, mas como uma profissão.
Tentamos desenvolver um pouco mais essa noção em outro trabalho, apresentado
num simpósio realizado em Los Angeles (UCLA) em maio de 79 (Gonzales, 1979c).
Ali,
falamos dessa dupla imagem da mulher negra de hoje: mulata e doméstica. Mas ali
também emergiu a noção de mãe preta, colocada numa nova perspectiva. Mas
ficamos por aí.
Nesse meio
tempo, participamos de uma série de encontros internacionais que tratavam da
questão do sexismo como tema principal, mas que certamente abriam espaço para a
discussão do racismo também. Nossa experiência aí foi muito enriquecedora. Vale
ressaltar que a militância política no Movimento Negro Unificado constituía-se
como fator determinante de nossa compreensão da questão racial. Por outro lado,
a experiência vivida enquanto membro do Grêmio Recreativo de Arte Negra e
Escola de Samba Quilombo permitiu-nos a percepção de várias facetas que se constituiriam em elementos muito
importantes para a concretização deste trabalho. E começaram a se delinear,
para nós, aquilo que se poderia chamar de contradições internas. O fato é que,
enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao
invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos
pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da
mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de
problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um
resto que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar. Exatamente
a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta que estavam ali, nos
martelando com sua insistência...
Nosso
suporte epistemológico se dá a partir de Freud e Lacan, ou seja da Psicanálise.
Justamente porque como nos diz Miller em sua Teoria da Alingua (1976):
O que
começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da linguagem, uma
outra abordagem da língua, cujo sentido só veio à luz com sua retomada por
Lacan. Dizer mais do que sabe, não saber o que diz, dizer outra coisa que não o
que se diz, falar para não dizer nada, não são mais, no campo freudiano, os
defeitos da língua que justificam a criação das línguas formais.
Estas são
propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar. Psicanálise e Lógica,
uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas
latas de lixo da lógica. Ou ainda: a análise desencadeia o que a lógica
domestica (p. 17).
Ora, na
medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois
assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise.
E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o
negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos)
domesticar?
E o risco
que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente
porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala
própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos
adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai
falar, e numa boa.
A primeira
coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é
natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele
tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade
intelectual, criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela
polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é
malandro é ladrão.
Logo, tem
que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha
(Gonzales, 1979b), pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente,
é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a
gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto
têm mais é que ser favelados.
Racismo? No
Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença
porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem
tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça,
ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo,
culto, elegante e com umas feições tão finas... Nem parece preto.
Por aí se
vê que o barato é domesticar mesmo. E se a gente detém o olhar em determinados
aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações
mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que
a constituem. (Como é que pode?) Seguindo por aí, a gente também pode apontar
pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os
diferentes modos de rejeição/integração de seu papel.
Por isso, a
gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende
caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória.
Como
consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico
se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece,
esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o
lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção.
Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da
rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse
discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que
ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu
jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da
consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas, também
chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca
que a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de cena. E
apela prá tudo nesse sentido (1). Só que isso ta aí... e fala.
II – A Nêga
Ativa
Mulata,
mulatinha meu amor
Fui nomeado
teu tenente interventor
(Lamartine
Babo)
Carnaval.
Rio de Janeiro, Brasil. As palavras de ordem de sempre: Bebida, Mulher e Samba.
Todo mundo obedece e cumpre. Blocos de sujo, banhos a fantasia, frevos,
ranchos, grandes bailes nos grandes clubes, nos pequenos também. Alegria,
loucura, liberdagem geral. Mas há um momento que se impõe. Todo mundo se
concentra: nas concentração, nas arquibancadas, diante da tevê.
As escolas
vão desfilar suas cores duplas ou triplas. Predominam as duplas: azul e branco,
verde e rosa, vermelho e branco, amarelo e preto, verde e branco e por aí
afora.
Espetáculo
feérico, dizem os locutores: plumas, paetês, muito luxo e riqueza. Imperadores, uiaras, bandeirantes e
pioneiros, princesas, orixás, bichos, bichas, machos, fêmeas, salomões e
rainhas de sabá, marajás, escravos, soldados, sóls e luns, baianas, ciganas,
havaianas. Todos sob o comando do ritmo das baterias e do rebolado das mulatas
que, dizem alguns, não estão no mapa. “Olha aquele grupo do carro alegórico,
ali. Que coxas, rapaz” “Veja aquela passista que vem vindo; que bunda, meu Deus!
Olha como ela mexe a barriguinha. Vai ser gostosa assim lá em casa, tesão”.
“Elas me
deixam louco, bicho”.
E lá vão
elas, rebolantes e sorridentes rainhas, distribuindo beijos como se fossem
bênçãos para seus ávidos súditos nesse feérico espetáculo... E feérico vem de
“fée”, fada, na civilizada da língua francesa. Conto de fadas?
(1) O
melhor exemplo de sua eficácia está no barato da ideologia do branqueamento.
Pois foi justamente um crioulo, apelidado de mulato, quem foi o primeiro na sua
articulação em discurso “cinetífico”. A gente ta falando do “seu” Oliveira
Vianna. Branqueamento, não importa em que nível, é o que a consciência cobra da
gente, prá mal aceitar a presença da gente, prá mal aceitar a presença da
gente. Se a gente parte prá alguma crioulice, ela arma logo um esquema prá
gente “se comportar como gente”. E tem muita gente da gente que só embarca nessa.
O mito que
se trata de reencenar aqui, é o da democracia racial. E é justamente no momento
do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força simbólica.
E é nesse
instante que a mulher negra transforma-se única e exclusivamente na rainha, na
“mulata deusa do meu samba”, “que passa com graça/fazendo pirraça/fingindo
inocente/tirando o sossego da gente”. É nos desfiles das escolas de primeiro
grupo que a vemos em sua máxima exaltação. Ali, ela perde seu anonimato e se
transfigura na Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos
príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la. Estes, por
sua vez, tentam fixar sua imagem, estranhamente sedutora, em todos os seus
detalhes anatômicos; e os “flashes” se sucedem, como fogos de artifício
eletrônicos. E ela dá o que tem, pois sabe que amanhã estará nas páginas das
revistas nacionais e internacionais, vista e admirada pelo mundo inteiro. Isto,
sem contar o cinema e a televisão. E lá vai ela feericamente luminosa e
iluminada, no feérico espetáculo.
Toda jovem
negra, que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio, sonha com
a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com esse sonho dourado, conto de fadas
no qual “A Lua te invejando fez careta/ Porque, mulata, tu não és deste
planeta”. E por que não?
Como todo
mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra.
Numa primeira
aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial
sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no
cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada
doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se
exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata
que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A
nomeação vai depender da situação em que somos vistas (2).
(2) Nesse
sentido vale apontar para um tipo de experiência muito comum. Refiro-me aos
vendedores que batem à porta da minha casa e, quando abro, perguntam
gentilmente: “A madame está?” Sempre lhes respondo que a madame saiu e, mais
uma vez, constato como somos vistas pelo “cordial” brasileiro. Outro tipo de
pergunta que se costuma fazer, mas aí em lugares públicos: “Você trabalha na
televisão?” ou “Você é artista?” E a gente sabe que significa esse “trabalho” e
essa “arte”.
Se a gente
dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa
interessante. Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a
gente porque a gente é preto. Prá gente que é preta então, nem se fala. Será
que as avós da gente, as mucamas, fizeram alguma coisa prá eles tratarem a
gente desse jeito? Mas, quê era uma mucama? O Aurélio assim define: Mucama. (Do
quimbumdo mu’kama ‘amásia escrava’) S. f. Bras. A escrava negra moça e de
estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar
pessoas da família e que, por vezes era ama-de-leite. (Os grifos são nossos).
Parece que
o primeiro aspecto a observar é o próprio nome, significante proveniente da
língua quimbunda, e o significado que nela possui. Nome africano, dado pelos
africanos e que ficou como inscrição não apenas no dicionário. Outro aspecto interessante
é o deslocamento do significado no dicionário, ou seja, no código oficial.
Vemos aí
uma espécie de neutralização, de esvaziamento no sentido original. O por vezes
é que, de raspão, deixa transparecer alguma coisa daquilo que os africanos
sabiam, mas que precisava ser esquecido, ocultado.
Vejamos o
que nos dizem outros textos a respeito de mucama, June E. Hahner, em A Mulher
no Brasil (1978) assim se expressa:
... a
escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores,
condições de vida amena, fácil e da maior parte das vezes ociosa. Cozinhava,
lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas e dos quartos,
cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. Tinha seus
próprios filhos, o dever e a fatal solidariedade de amparar seu companheiro, de
sofrer com os outros escravos da senzala e do eito e de submeter-se aos
castigos corporais que lhe eram, pessoalmente, destinados. (...) O amor para a
escrava (...) tinha aspectos de verdadeiro pesadelo. As incursões desaforadas e
aviltantes do senhor, filhos e parentes pelas senzalas, a desfaçatez dos padres
a quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos pecuniários e degredo para a
África, não intimidavam nem os fazia desistir dos concubinatos e mancebias com
as escravas. (p. 120 e 121)
Mais
adiante, citando José Honório Rodrigues, ela se refere a um documento do final
do século XVIII pelo qual o vice-rei do Brasil na época excluía de suas funções
de capitão-mor que manifestara “baixos sentimentos” e manchara seu sangue pelo
fato de se ter casado com uma negra. Já naqueles tempos, observa-se de que
maneira a consciência (revestida de seu caráter de autoridade, no caso) buscava
impor suas regras do jogo: concubinagem tudo bem; mas casamento é demais.
Ao
caracterizar a função da escrava no sistema produtivo (prestação de bens e
serviços) da sociedade escravocrata, Heleieth Saffioti mostra sua articulação
com a prestação de serviços sexuais. E por aí, ela ressalta que a mulher negra
acabou por se converter no “instrumento inconsciente que, paulatinamente,
minava a ordem estabelecida, quer na sua dimensão econômica, quer na sua
dimensão familiar” (1976, p. 165).
Isto
porque, o senhor acabava por assumir posições antieconômicas, determinadas por
sua postura sexual; como houvesse negros que disputavam com ele no terreno do
amor, partia para a apelação, ou seja, a tortura e a venda dos concorrentes. E
a desordem se estabelecia exatamente porque as relações sexuais entre os
senhores e escravas desencadeavam, por mais primárias e animais que fossem,
processos de interação social incongruentes com as expectativas de
comportamento, que presidiam à estratificação em castas. Assim, não apenas
homens brancos e negros se tornavam concorrentes na disputa das negras, mas
também mulheres brancas e negras disputavam a atenção do homem branco. (p. 165)
Pelo que os
dois textos dizem, constatamos que o engendramento da mulata e da doméstica se
fez a partir da figura da mucama. E, pelo visto, não é por acaso que, no
Aurélio, a outra função da mucama está entre parênteses. Deve ser ocultada,
recalcada, tirada de cena. Mas isso não significa que não esteja aí, com sua
malemolência perturbadora. E o momento privilegiado em que sua presença se
torna manifesta é justamente o da exaltação mítica da mulata nesse entre
parênteses que é o carnaval.
Quanto à
doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e
serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas.
Daí, ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano.E é nesse cotidiano
que podemos constatar que somos vistas como domésticas. Melhor exemplo disso
são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada vez mais
crescentes. Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem vestidas” (afinal,
“boa aparência”, como vemos nos anúncios de emprego é uma categoria “branca”, unicamente
atribuível a “brancas” ou “clarinhas”).
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