Os rios da afetividade negra.



Pensar em sexualidade e afetividade das mulheres Negras é pensar em si e para si. Começo a refletir sobre este tema quando estava no dialogo informal com uma amiga/irmã em que ela de forma muito jocosa aponta que é uma mulher empoderada, advogada, possui um apartamento, vai comprar um carro, tem um rosto e corpo lindo e não consegue namorado, respondo com um ar de galhofa, que
ela tem tudo para ser uma mulher solteira.
A conversa se finda, mas percebo o quanto isso poderá ser perverso, afinal ser solteira nunca será um dilema, mas se sentir sozinha é o que machuca. Depois disso resolvi entrar na campanha das redes virtuais Mais amor entre nós da jornalista Sueide Kintê, e decidi escutar as histórias de amor. Escuto uma história por semana e dedico toda a minha atenção para estas mulheres.
No início pergunto se deseja apenas que escute ou se posso interferir, é um momento único. E não se torna única, apenas por causa da minha formação como Cientista Social e psicopedagoga, mas por ser mulher está inserida neste mar de ilusões e frustrações
.
No último Censo realizado no país, em 2010, precisamos atualizar estes dados, mais da metade das mulheres negras brasileiras não vivem em união, independente do estado civil. Sociólogas e militantes do feminismo negro e do mulherismo negro já afirmam que esta realidade deve ser considerada um fenômeno histórico, reflexo do racismo oriundo da mente escravocrata e dos estereótipos associados à mulher negra no imaginário da sociedade, normalmente relacionados à sexualidade e ao trabalho, é importante afirmar que não estamos pedindo encontro com homens e mulheres, para isso temos as redes sociais e os sites de relacionamento, estamos falando de solidão, mesmo quando se está acompanhada, mas não falamos sobre estas dores:
“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.” – Bell Hooks.

O mesmo Censo citado anteriormente aponta que as mulheres negras são as que menos se casam e as mais propensas ao “celibato definitivo”. A mulher branca desperta para a sensualidade e sexualidade, de forma bem diferença de nós mulheres, somos objeto de desejo e reprodução.
Infelizmente os impactos psicológicos deste preterimento ultrapassa gerações. Eles não se restringem exclusivamente aos relacionamentos amorosos, mas também às amizades e ao ambiente de trabalho, que podem gerar sentimentos que reforçam uma baixa autoestima que culmina no suicídio dos nossos projetos.
A tentativa de evitar este cenário acaba que projetamos nos relacionamentos como uma válvula de escape, triste engano! Dados da última Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE atestam que as mulheres negras representam 60% das mulheres agredidas por pessoas conhecidas. O Mapa da Violência 2015, realizado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais a pedido da ONU Mulheres, mostrou que a violência contra mulheres negras cresceu mais de 190% entre 2003 e 2013, praticada muitas vezes por pessoas identificadas como parceiros ou ex-parceiros.
Segundo Ana Cláudia Pacheco, no artigo “À Procura de um parceiro: raça, gênero e solidão na trajetória social e afetiva das mulheres negras em Salvador, Bahia” foi no corpo que as mulheres perceberam, sentiram e ressignificaram a solidão. A solidão foi percebida através de outras teias de significações, ganhando vários significados nas narrativas das mulheres desse grupo, como sofrimento, dor, vazio, diferença, falta, infelicidade.
As mulheres negras sendo ativistas ou não, tentam burlar a solidão, isto é, a ausência de parceiros, atribuindo-lhes significações produzidas numa rede de emaranhados de categorias que denotam maneiras de pensar e de negociar às suas escolhas, na busca por outros caminhos, novos espaços sociais.
Não se esgota aqui a possibilidade de entender de que maneira se deu e vai se dando esse processo de preterimento. Não podemos esquecer e se olhar sabendo que o corpo e a feminilidade da mulher negra, tendo como pano de fundo todo um passado histórico de múltiplas manipulações. Nossa construção psíquica é repleta de vazios e dores de gerações.
Deverás, para concluir o texto e não a discussão, recomendo a leitura do livro Balada de amor ao vento, da escritora moçambicana Paulina Chiziane. Esta inicia sua carreira literária em 1984, com contos publicados e lança seu primeiro livro em 1990, tornando-se a primeira mulher moçambicana a publicar um romance.
Chiziane participa organicamente da política de Moçambique como membro da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), na qual militou durante a juventude. É considerado um marco da literatura negra, uma indicação de leitura africana primaz.
Em seu romance, supracitado, o enredo acontece nos anos de colonização de Moçambique, ela aborda o binômio de gênero e raça atreladas as transformações da cultura tradicional moçambicana. A autora conta a história da personagem Sarnau, uma mulher negra, que parece como retrato fiel de outras mulheres de Moçambique. Está tem muitas dificuldades nos relacionamentos amorosos, se relaciona a princípio com Mwando, depois com o Rei Nguila, e, por último, novamente com Mwando.
Contudo nestas relações “amorosas” há diversas formas de violência: moral, simbólica, psicológica e a física, além da subserviência, solidão, a dura competição entre as mulheres e o tão requisitado silenciamento da mulher negra.
Isso tudo é reflexo de uma sociedade misógina, racista e poligâmica. Este é um dos temas centrais do texto, e fortemente criticada pela narradora/ autora na construção do enredo, além disso, o conflito racial é apresentado no livro desde o início, pois, depois de Mwando deixar Sarnau para casar-se com outra mulher, a protagonista é escolhida pela rainha como a futura esposa do filho, Nguila.
Deverás, a narrativa não problematiza o tema da subvalorização da mulher negra com digressões, explicações, mas deixa a informação como pano de fundo para explicar, aos poucos, muitas das agruras por que passa Sarnau. A realeza estava à procura de uma mulher para o príncipe desposar, mostrando que as mulheres de pele mais clara era algo realmente cristalizado no contexto em questão como mais bonitas e desejadas para o casamento.
No último trecho do romance de Chiziane podemos confirmar essa ideia. Quando a rainha procura uma princesa, e ainda não encontrou Sarnau e vai conhecendo várias pretendentes ao cargo. Uma delas, Eni, que é totalmente rechaçada em função da miscigenação e de seu clareamento (por ter lábios finos). A única cena, pois, em que a mulher mais clara não é tida como mais bela (e em que a antiga ofensa que compara negros a macacos é invertida, sendo dirigida à pessoa mais clara do contexto), é justamente quando a voz discursiva é de outra mulher negra.
Neste livro as mulheres Negras retintas são valorizados, fugindo completamente a regra dos livros, filmes, séries e do nosso imaginário de beleza (É preciso se colocar como sujeito do racismo e reprodutor deste). Chiziane mostra o colonizador com o discurso hegemônico.
Por vezes, através da linguagem verbal, explícita, direta, outras indiretas, mas que são pontuais e efetivas. Pelo discorrer do texto percebe-se que o ser negro não era uma coisa positiva no local onde viviam, um efeito psicológico difícil de ser combatido à medida que o tempo passa e as relações de poder se sedimentam.
Sarnau é menosprezada ao longo do texto, e seu companheiro não parece demonstrar nenhum remorso em deixa-la sozinha, mesmo estando casada, ele fica dois anos sem ter relações afetivas com a esposa, levando a personagem ao sentimento de desprezo. Como o próprio príncipe admite, seu grande amor é Phati, pois é a mais bonita, não coincidentemente, é a mais clara das esposas. Não poderíamos presumir, sem nenhuma base, que é apenas por Phati ter a pele mais clara que é mais amada, evidentemente.
Neste enredo a autora deixa evidente que nas sociedades colonizadas as mulheres tidas como dignas de um casamento e de maior investimento afetivo, preocupação e cuidados são mulheres negras de pele mais clara. A partir daí, ficam posto algumas relações que atravessam o oceano Atlântico e aportam no Brasil – na moldagem de relações sociais marcadas por concepções sobre raça e gênero construídas dentro do contexto da colonização.
Chiziane discorre um tema muito caro para nós, através dessa narrativa de ficção conseguimos fazer parte da trama. Ela confirma, também, a solidez da tendência de dar importância às literaturas como caminho de compreensão do mundo fora da ficção.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.

CHIZIANE, Paulina. Balada do amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

HOOKS, Bell. “Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens”. Tradução de Carlianne Paiva Gonçalves, Joana Plaza Pinto e Paula de Almeida Silva. Estudos feministas. Florianópolis, 16(3): 424, setembro-dezembro/2008.

MORRISON, Toni. O olho mais azul. Tradução de Manoel Paulo Ferreira. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

MORRISON, Toni. The bluest eye. New York: Washington Square Press, 1972.

PACHECO, Ana Cláudia Lemos. À Procura de um parceiro: raça, gênero e solidão na trajetória social e afetiva das mulheres negras em Salvador, Bahia. IX Congresso Internacional da Brazilian Studies. Association (BRASA). Tulane University, New Orleans, Louisiana, USA, 27-29 de março de 2008

SANTOS, Gislene Aparecida dos. Mulher negra, homem branco. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.


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